CARTOGRAFIAS DISPERSAS - RESIDÊNCIA #5
Existem
aqui vários espaços, mas que nunca se sobrepõem. A solenidade do
sítio cria essa separação real e fictícia e não nos deixa
desviar. Sentimos-nos constantemente observados pelos tantos olhos
das incríveis personagens que aí vivem. Ganham forma a partir das
paredes, envolvendo-se umas com as outras, construindo estes ambiente
de jogos diversos. Viver este local é deixar-se levar, envolver-se
com cada um dos personagens, entrar nas suas imensas bocas, olhos e
cores. A frieza das paredes diz-nos que por aqui passa muita gente,
mas que ninguém fica. Os olhos perscrutadores das meninas na parede
causam arrepios, mas rapidamente se imiscuem com a própria parede, a
janela e as cortinas. Sopramos para sentirmos que as minhocas ainda
vivem e as suas cabecinhas levantadas dizem-nos que sim e conseguimos
suspirar de alívio. Escrevo com as janelas fechadas e só sinto
carros a passar e presenças a seguirem-me. Fazem-me sempre sentir
acompanhada e, apesar da bizarrice, sinto-me bem. São espaços de
lazer, de preguiça e de trabalho tranquilo e de relax. A mesa
convida a sentar e a convidar também todos os seres da sala para uma
conversa à volta da mesa. As pequenas divisões que desembocam neste
espaço central são como as artérias, alimentando de vitalidade o
centro propulsor. Lá encontramos uma atmosfera de possibilidades
condensadas, uma densidade palpitante, sob a forma de infindáveis
objectos de curiosas formas, parecendo sempre prontos a sair,
explodindo em múltiplas direcções. É como estar dentro de um
organismo vivo, onde a cada momento os seus poros nos espiam,
respiram e se fazem sentir intensamente. Será por isso que tentamos
ficar mais tempo, respirando e vivendo em uníssono neste enorme ente
de múltiplas caras. Num pequeno ponto mais escuro, as escadas. Uma
subida estreita que deixa antever outros mundos desenvolvendo-se
paralelamente. Curiosamente, neste caso, dá vontade de ficar neste
longo espaço de ligação, quebrando a sua função específica.
Será talvez pela invulgar luz que tem, ou, quem sabe, pelos muitos
olhos que nos acompanham. Temos uma visão bastante ampla aqui e que
se amplifica através dos riscos, azuis, brancos e pretos que nos
transportam até ao infinito. Existem aqui vários olhos e nunca nos
sentimos sozinhos. Todos nos olham e seguem nossos movimentos.
Pessoas animalescas, bizarras, rudes, mas também bonecos sorridentes
e piny pons inexpressivos. É já impossível disfarçar, os olhos
desviam-se constantemente para aquelas grandes portas envidraçadas
que deixam transparecer o impressionante interior que resguardam.
Fecham-se os olhos, voltam-se a abrir, somos cada uma dessas vezes
bombardeados por pequenas partículas de sonho que populam em cada
canto. Uma grande sala, cheia de luz, com uma mesa no centro,
leva-nos a imaginar grandes planos, quadros cheios de tinta, cor e
vida, que ali crescem. Tudo está organizado. Mas é uma sensação
aparente, no fundo existe aquele caos dinâmico e vivo dos espaços
muito habitados. O cheiro maravilhoso dos lençóis conforta-nos e
bem-vinda-nos, mas há sempre algo que nos impele a sair. Abro as
janelas e entra uma luz que afasta as personagens, o que me faz logo
fechá-las. Não consigo estar aqui sozinha. Tenho medo do que não
está. Sente-se um pulsar latente, uma vontade maior que as próprias
paredes. Um lugar com uma força incrível, rodeado de telas, tintas,
panos sujos, pincéis duros do tempo e do desuso. Acompanha
praticamente a casa em toda a sua extensão. Esta forte presença é
bem perceptível pelas três portas que apresenta, comunicando-se
facilmente com qualquer outra divisão. Espaço de vício, de prazer,
de fumo, de conversas, enfim, de vida. Sempre misturado com os
cheiros maravilhosos de assados, bolos ou cafés... Ao chegar,
optou-se por circundar o edifício antes de entrar. Revelam-se
diversas sensações à medida que se acompanha as paredes
exteriores, entre as fores e a relva e os pequenos objectos e
brinquedos largados no chão. Talvez sejam as meninas com os seus
olhos, talvez o cheiro demasiado delicioso das camas, talvez a
própria frieza do local. Mas sentimo-nos tão bem aqui, quando se
apaga a luz e nos rebolamos nos cobertores cheirosos e nas almofadas
gordas. Talvez sejamos nós próprios, através do espelho, que nos
repugnamos e nos expulsamos. Talvez. Mas dá-me só mais cinco
minutos e já saio. Aqui vivem-se mundos imaginários, reais e
fantasias à espera de acontecer.